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Gedicht

A. M. Pires Cabral

CONFESSION OF ONE WHO FLEW

1.

But if in these six and a half decades
I was capable of some sort of flight

– which could only have been comparable
to the awkward and rudimentary flight
of chickens, with a great expenditure
of energy to achieve brief and desperate
moments of scant ascension,
but a kind of flying all the same,
by which I managed to stay aloft
in my lighter moments –

now, that cycle of flight having ended,
I must perch, the way birds do.

This isn’t like when a shop
changes its line of business
or closes to take inventory
at year’s end.
Nor is it like carrying out
an arrest warrant
or atoning for the disorderliness
of being a pedestrian who flew.
Nor is it the inevitable conclusion
to an act of sedition.

Perching, that’s all. Returning
to the endearing things of earth.
It’s the earth finally claiming what I owe her
and my claiming what she owes me
since my very first hour.

I flew, I’m flown out.
Without nostalgia.

2.

I choose the branch
most suited to my condition and alight
from my flight, perching like a bird
whose flying temporarily peters out.

And just as a perched bird, right
after alighting, still flaps its wings
two or three times,
so I flap mine.

But whereas the bird flaps its wings
to shake off the residue
of its flight,
I flap mine to keep my balance;
the branch bends, I’m not as agile
as I used to be, and I’d fall
if I didn’t flap my wings.

Which is to say: I flap my wings the way
the tight-rope walker probes with his rod
and the blind man with his cane.

To feel more comfortable
outside my flight.

3.

And my perching, unlike the bird’s,
is not a temporary state. From now on
I’ll observe the march of my days
from my definitively perched perspective.

So here I am, perched, trying to accommodate
my body to this new condition.

My eyes look up at the space
from where I banished myself
to see if perchance I scratched
the crystal of air with my flight,
since even the tiniest scratch would cause
the crystal to cease being crystal.

I scratched nothing.
Thanks be to God.
After all that clumsy flying
I leave the air as clear and whole
as I found it.

(It’s no wonder. I was always careful to shake
the dust from my feet before rising in flight.)

4.

No, it’s not out of nostalgia
that in this terminal hour of perching I remember
the deft but imprudent, and impudent, forays
of my flight and how I seized the light.

It’s out of gratitude, I suppose.

Flying was always the most useful
of my useless occupations.
A sprig of hay in the corner of my mouth.
A charitable donation to the flesh.
The orifice through which
torrents drained.

Intensely perched,
this is what I remember.

CONFESSO QUE VOEI

CONFESSO QUE VOEI

1.

Mas, se nestas seis décadas e meia
eu fui capaz de algum voo

– concedo, semelhante ao das galinhas,
isto é, rudimentar, desgracioso,
com muitíssimo dispêndio de energia
para pouca ascensão, breve e apenas
em desespero de causa;
em todo o caso uma forma de voo
pelo qual me sustentei no ar
em horas de menos peso –

devo agora, fechado o ciclo do voo,
como os pássaros pousar.

E isto não é como uma loja
que muda de ramo
ou que em fins de Dezembro
fecha para balanço.
Nem como executar
um mandado de detença.
Nem expiar a desordem
de, sendo pedestre, ter voado.
Nem um remate compulsivo
à sedição.

Pousar, é tudo. Regressar
ao afago das coisas da terra.
A terra cobrar por fim o que lhe devo
e eu cobrar dela o que me deve
desde a primeira hora.

Voei, está voado.
Nada de nostalgias.

2.

Escolho o galho
mais ajeitado à minha condição
e, como a ave a quem o voo se esgota
temporariamente, apeio-me do voo.

Assim como a ave que, acabada
de pousar, bate ainda as asas
por duas ou três vezes,
assim as bato eu.

Mas enquanto a ave as bate
como para sacudir delas
os resíduos do voo,
eu faço-o por exigência de equilíbrio:
o ramo verga, já não tenho
a agilidade doutros tempos,
cairia se não batesse as asas.

Isto é: bato-as da mesma forma que
o funâmbulo tenteia a vara
e o cego a bengala.

Para me acomodar mais facilmente
no exterior do voo.

3.

Nem o meu pouso é passageiro
como o da ave. Daqui em diante
assistirei ao decurso dos dias
pousado definitivamente.

Eis-me pois pousado, procurando
ajeitar o corpo à nova condição.

Os olhos erguidos para o espaço
donde me escorracei
para saber se porventura risquei
o cristal do ar com o meu voo.
Um arranhão que fosse, que depois dele
o cristal já não fosse cristal.

Não risquei.
Louvado seja Deus.
Depois de tanto voo desastrado
deixo o ar nítido e inteiro
como o encontrei.

(Não admira. Sempre tive o cuidado
de sacudir os pés à entrada do voo.)

4.

Não. Não é por nostalgia
que nesta hora extrema de pousar
me lembram as hábeis imprudências do voo,
as impudências, a tomada da luz.

Parece-me isto antes gratidão.

Voar foi sempre o mais útil
dos meus gestos inúteis.
A haste de feno ao canto da boca.
Um donativo à carne.
O orifício por onde
se escoavam enxurradas.

Intensamente pousado,
é isto que me lembra.
A. M. Pires Cabral

A. M. Pires Cabral

(Portugal, 1941)

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CONFESSO QUE VOEI

1.

Mas, se nestas seis décadas e meia
eu fui capaz de algum voo

– concedo, semelhante ao das galinhas,
isto é, rudimentar, desgracioso,
com muitíssimo dispêndio de energia
para pouca ascensão, breve e apenas
em desespero de causa;
em todo o caso uma forma de voo
pelo qual me sustentei no ar
em horas de menos peso –

devo agora, fechado o ciclo do voo,
como os pássaros pousar.

E isto não é como uma loja
que muda de ramo
ou que em fins de Dezembro
fecha para balanço.
Nem como executar
um mandado de detença.
Nem expiar a desordem
de, sendo pedestre, ter voado.
Nem um remate compulsivo
à sedição.

Pousar, é tudo. Regressar
ao afago das coisas da terra.
A terra cobrar por fim o que lhe devo
e eu cobrar dela o que me deve
desde a primeira hora.

Voei, está voado.
Nada de nostalgias.

2.

Escolho o galho
mais ajeitado à minha condição
e, como a ave a quem o voo se esgota
temporariamente, apeio-me do voo.

Assim como a ave que, acabada
de pousar, bate ainda as asas
por duas ou três vezes,
assim as bato eu.

Mas enquanto a ave as bate
como para sacudir delas
os resíduos do voo,
eu faço-o por exigência de equilíbrio:
o ramo verga, já não tenho
a agilidade doutros tempos,
cairia se não batesse as asas.

Isto é: bato-as da mesma forma que
o funâmbulo tenteia a vara
e o cego a bengala.

Para me acomodar mais facilmente
no exterior do voo.

3.

Nem o meu pouso é passageiro
como o da ave. Daqui em diante
assistirei ao decurso dos dias
pousado definitivamente.

Eis-me pois pousado, procurando
ajeitar o corpo à nova condição.

Os olhos erguidos para o espaço
donde me escorracei
para saber se porventura risquei
o cristal do ar com o meu voo.
Um arranhão que fosse, que depois dele
o cristal já não fosse cristal.

Não risquei.
Louvado seja Deus.
Depois de tanto voo desastrado
deixo o ar nítido e inteiro
como o encontrei.

(Não admira. Sempre tive o cuidado
de sacudir os pés à entrada do voo.)

4.

Não. Não é por nostalgia
que nesta hora extrema de pousar
me lembram as hábeis imprudências do voo,
as impudências, a tomada da luz.

Parece-me isto antes gratidão.

Voar foi sempre o mais útil
dos meus gestos inúteis.
A haste de feno ao canto da boca.
Um donativo à carne.
O orifício por onde
se escoavam enxurradas.

Intensamente pousado,
é isto que me lembra.

CONFESSION OF ONE WHO FLEW

1.

But if in these six and a half decades
I was capable of some sort of flight

– which could only have been comparable
to the awkward and rudimentary flight
of chickens, with a great expenditure
of energy to achieve brief and desperate
moments of scant ascension,
but a kind of flying all the same,
by which I managed to stay aloft
in my lighter moments –

now, that cycle of flight having ended,
I must perch, the way birds do.

This isn’t like when a shop
changes its line of business
or closes to take inventory
at year’s end.
Nor is it like carrying out
an arrest warrant
or atoning for the disorderliness
of being a pedestrian who flew.
Nor is it the inevitable conclusion
to an act of sedition.

Perching, that’s all. Returning
to the endearing things of earth.
It’s the earth finally claiming what I owe her
and my claiming what she owes me
since my very first hour.

I flew, I’m flown out.
Without nostalgia.

2.

I choose the branch
most suited to my condition and alight
from my flight, perching like a bird
whose flying temporarily peters out.

And just as a perched bird, right
after alighting, still flaps its wings
two or three times,
so I flap mine.

But whereas the bird flaps its wings
to shake off the residue
of its flight,
I flap mine to keep my balance;
the branch bends, I’m not as agile
as I used to be, and I’d fall
if I didn’t flap my wings.

Which is to say: I flap my wings the way
the tight-rope walker probes with his rod
and the blind man with his cane.

To feel more comfortable
outside my flight.

3.

And my perching, unlike the bird’s,
is not a temporary state. From now on
I’ll observe the march of my days
from my definitively perched perspective.

So here I am, perched, trying to accommodate
my body to this new condition.

My eyes look up at the space
from where I banished myself
to see if perchance I scratched
the crystal of air with my flight,
since even the tiniest scratch would cause
the crystal to cease being crystal.

I scratched nothing.
Thanks be to God.
After all that clumsy flying
I leave the air as clear and whole
as I found it.

(It’s no wonder. I was always careful to shake
the dust from my feet before rising in flight.)

4.

No, it’s not out of nostalgia
that in this terminal hour of perching I remember
the deft but imprudent, and impudent, forays
of my flight and how I seized the light.

It’s out of gratitude, I suppose.

Flying was always the most useful
of my useless occupations.
A sprig of hay in the corner of my mouth.
A charitable donation to the flesh.
The orifice through which
torrents drained.

Intensely perched,
this is what I remember.
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