Gedicht
Jorge de Sena
LETTER TO MY CHILDREN ON GOYA’S EXECUTIONS OF THE THIRD OF MAY
I don’t know, children, what world will be yours.
It’s possible (everything’s possible) that it will be
the world I wish for you. A simple world,
in which the only difficulty will come
from there being nothing that’s not simple and natural.
A world in which everything will be allowed,
according to your fancy, your yearning, your pleasure,
your respect for others and their respect for you.
It’s also possible that it won’t be this, and that this
won’t even be what you want in life. Everything’s possible,
even though we fight, as we must fight,
on behalf of our idea of freedom and justice
and – still more important – in steadfast
allegiance to the honour of being alive.
One day you will realize what a vast multitude,
as countless as humanity, felt this way,
loving others for whatever they had that was unique,
unusual, free, different,
and they were sacrificed, tortured, beaten
and hypocritically handed over to secular justice,
to be liquidated “with sovereign pity and without bloodshed”.
For being loyal to a god, to a conviction,
to a country, to a hope, or merely
to the irrefutable hunger that gnawed them from within,
they were gutted, flayed, burned, gassed,
and their bodies heaped up as anonymously as they had lived,
or their ashes scattered so that no memory of them remained.
Sometimes, for belonging to a certain race
or class, they atoned for all the wrongs
they had not committed or had no awareness
of having committed. But it also happened
and happens that they were not killed.
There have always been infinite methods for dominating,
annihilating quietly, gently,
through ways inscrutable, as they say of God’s ways.
These executions, this heroism, this horror,
was one episode, among thousands, that happened in Spain
over a century ago and whose violence and injustice
shocked the heart of a painter named Goya,
who had a very large heart, full of rage
and love. But this is nothing, children,
just one event, a brief event,
in this chain of which you are (or aren’t) a link
of iron and sweat and blood and a bit of semen
on the way to the world I dream for you.
Believe me that no world, that nothing and nobody
is worth more than a life or the joy of having life.
It is this joy that matters most.
Believe me that the dignity you’ll hear so much about
is nothing but this joy that comes
from being alive and knowing that no one has ever
been less alive or suffered or died
so that just one of you could stave off a little longer
the death that belongs to all of us and will come.
That you will know all of this with peace of mind,
with rancour toward no one, without fear, without ambition,
and above all without apathy or indifference
is my ardent hope. So much blood,
so much pain, so much anguish, must one day prove
– even if the tedium of a happy world torments you –
not to have been in vain. I confess that
very often, thinking about the horror of so many centuries
of oppression and cruelty, I have a moment of hesitation
in which an overwhelming bitterness makes me despair.
Are they or aren’t they in vain? And even if they aren’t,
who will resurrect those millions, who will restore
not only their lives but all that was taken from them?
No Final Judgement, children, can give them
that moment they did not live, that object
they did not freely enjoy, that gesture
of love they were going to make ‘tomorrow’.
And so the same world we create urges us
to treat it with care, as something that isn’t
just ours but has been entrusted to us
that we might respectfully watch over it
in memory of the blood that flows in our veins,
and of the flesh we’ve inherited, and of the love that
others did not love because it was taken from them.
© Translation: 1997, Richard Zenith
CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA
CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
© 1963, Jorge de Sena
From: Metamorfoses
Publisher: Edições 70, Lisboa
From: Metamorfoses
Publisher: Edições 70, Lisboa
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CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
From: Metamorfoses
LETTER TO MY CHILDREN ON GOYA’S EXECUTIONS OF THE THIRD OF MAY
I don’t know, children, what world will be yours.
It’s possible (everything’s possible) that it will be
the world I wish for you. A simple world,
in which the only difficulty will come
from there being nothing that’s not simple and natural.
A world in which everything will be allowed,
according to your fancy, your yearning, your pleasure,
your respect for others and their respect for you.
It’s also possible that it won’t be this, and that this
won’t even be what you want in life. Everything’s possible,
even though we fight, as we must fight,
on behalf of our idea of freedom and justice
and – still more important – in steadfast
allegiance to the honour of being alive.
One day you will realize what a vast multitude,
as countless as humanity, felt this way,
loving others for whatever they had that was unique,
unusual, free, different,
and they were sacrificed, tortured, beaten
and hypocritically handed over to secular justice,
to be liquidated “with sovereign pity and without bloodshed”.
For being loyal to a god, to a conviction,
to a country, to a hope, or merely
to the irrefutable hunger that gnawed them from within,
they were gutted, flayed, burned, gassed,
and their bodies heaped up as anonymously as they had lived,
or their ashes scattered so that no memory of them remained.
Sometimes, for belonging to a certain race
or class, they atoned for all the wrongs
they had not committed or had no awareness
of having committed. But it also happened
and happens that they were not killed.
There have always been infinite methods for dominating,
annihilating quietly, gently,
through ways inscrutable, as they say of God’s ways.
These executions, this heroism, this horror,
was one episode, among thousands, that happened in Spain
over a century ago and whose violence and injustice
shocked the heart of a painter named Goya,
who had a very large heart, full of rage
and love. But this is nothing, children,
just one event, a brief event,
in this chain of which you are (or aren’t) a link
of iron and sweat and blood and a bit of semen
on the way to the world I dream for you.
Believe me that no world, that nothing and nobody
is worth more than a life or the joy of having life.
It is this joy that matters most.
Believe me that the dignity you’ll hear so much about
is nothing but this joy that comes
from being alive and knowing that no one has ever
been less alive or suffered or died
so that just one of you could stave off a little longer
the death that belongs to all of us and will come.
That you will know all of this with peace of mind,
with rancour toward no one, without fear, without ambition,
and above all without apathy or indifference
is my ardent hope. So much blood,
so much pain, so much anguish, must one day prove
– even if the tedium of a happy world torments you –
not to have been in vain. I confess that
very often, thinking about the horror of so many centuries
of oppression and cruelty, I have a moment of hesitation
in which an overwhelming bitterness makes me despair.
Are they or aren’t they in vain? And even if they aren’t,
who will resurrect those millions, who will restore
not only their lives but all that was taken from them?
No Final Judgement, children, can give them
that moment they did not live, that object
they did not freely enjoy, that gesture
of love they were going to make ‘tomorrow’.
And so the same world we create urges us
to treat it with care, as something that isn’t
just ours but has been entrusted to us
that we might respectfully watch over it
in memory of the blood that flows in our veins,
and of the flesh we’ve inherited, and of the love that
others did not love because it was taken from them.
© 1997, Richard Zenith
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